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Victor Leonardi: um navegante, tantos sonhos

Kelerson Semerene Costa, 6 de dezembro de 2025

 

Chegaremos de mãos dadas,
Tagore, ao divino mundo
em que o amor eterno mora
e onde a alma é o sonho profundo
da rosa dentro da aurora
(Cecília Meireles)
 
É com grande tristeza que o Departamento de História da Universidade de Brasília se despede do professor Victor Paes de Barros Leonardi. Victor Leonardi nasceu em Araras (SP), em 15 de outubro de 1942. Foi professor no HIS de 1974 a 1976 e de 1987 a 1997. Foi, também, professor visitante nas universidades federais do Amazonas e da Paraíba, na Universidade de Campinas e na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Brindou seus alunos com memoráveis aulas de História do Brasil, História da Amazônia, História das Religiões, Cultura Ibérica, Metodologia da História, no que sempre foi retribuído com admiração e respeito unânimes.
 
Seus interesses e suas áreas de estudos eram múltiplas e vários foram os meios pelos quais ele atuou como intelectual erudito, refinado, profícuo, de escrita simples, defensor da multidisciplinaridade, avesso ao pedantismo. Publicou 21 livros, entre ensaios, ficção e poesia, além de participar em diversas obras coletivas. Quando morreu, neste sábado, 06 de dezembro, em São José dos Campos (SP), redigia uma obra sobre a formação do Estado nacional no Brasil e deixou, inéditos, um livro sobre a escravidão contemporânea na Amazônia e uma autobiografia em quatro volumes. Escreveu roteiros e fez pesquisas para mais de vinte documentários, entre eles os premiados “Atlântico Negro – na rota dos orixás” e “Tesouro Natterer”, dirigidos pelo cineasta Renato Barbieri; ele aplicou o cinema na sala de aula e passou a se dedicar ao cinema documental como instrumento de difusão do conhecimento.
 
O documentário “Tesouro Natterer”, a propósito, é fruto de um projeto de pesquisa iniciado ainda na década de 1990, que teve como primeiro passo a exposição fotográfica de uma até então desconhecida coleção etnográfica, abrigada no Museum für Völkerkunde, de Viena, com cerca de 1500 peças, organizada por Johann Natterer – membro da expedição científica austríaca que acompanhou a princesa Leopoldina ao Brasil. Além da autorização para produzir as fotos, o projeto também obteve a microfilmagem de documentos referentes ao Brasil (1814-1918), conservados em arquivos austríacos, num total de 60 mil microformas, atualmente depositadas e disponíveis para pesquisa no Arquivo Central da UnB. O projeto foi desenvolvido em colaboração com o Museu Amazônico da Universidade Federal do Amazonas e foi financiado por diferentes órgãos do governo austríaco, por solicitação da Embaixada da Áustria no Brasil. Segundo Victor, também “foi muito importante” o apoio do seu colega Amado Luiz Cervo, notável professor do HIS, falecido recentemente.
 
Seu primeiro livro, “História da indústria e do trabalho no Brasil (das origens aos anos 20)”, em coautoria com Francisco Foot Hardman, foi publicado em 1982 e resultou de seus estudos de pós-graduação na Universidade de Paris (Sorbonne) e de sua atuação como coordenador do projeto “Imagens e História da Industrialização no Brasil (1889-1945)”, nas origens do Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, juntamente com o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro e o cineasta Lauro Escorel. Embora proeminente, a participação de Victor foi, por assim dizer, clandestina, pois teve o nome vetado por determinação dos órgãos de inteligência da ditadura – conforme relato de Pinheiro e Foot no documentário Reminiscências de um Projeto, de Lauro Escorel.
 
No retorno à UnB, Victor logo se vinculou ao recém-criado Núcleo de Estudos Amazônicos, do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, onde, para além das pesquisas, professores e alunos de diversos departamentos recebiam indígenas e extrativistas e mobilizavam apoios para suas lutas: contra as diversas formas de violência, contra a destruição da floresta, em defesa da demarcação das terras indígenas, em defesa dos direitos humanos e da paz naqueles vastos sertões do Brasil.
 
Assim é que, dos novos ensaios, três foram frutos de sua dedicação ao estudo da Amazônia: “Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil”, profunda análise (ampla no tempo e na geografia) das relações entre a Modernidade e os povos indígenas do Brasil; “Os historiadores e os rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira”, que retira do esquecimento uma velha cidade do século XVII, abandonada e arruinada no meio da floresta, às margens do rio Negro, para promover uma investigação da dialética progresso/destruição na região amazônica, admirável (e pioneiro) estudo de história ambiental e história social.
 
O terceiro “ensaio amazônico” resultou de pesquisa pouco usual para um historiador: sob encomenda do Ministério da Saúde, percorreu as fronteiras amazônicas, do Oiapoque ao Guaporé, para identificar as redes sociais pelas quais o HIV poderia se propagar às terras indígenas mais remotas e, a partir de extenso trabalho de campo, elaborou um minucioso quadro social, étnico e histórico, publicado como “Fronteiras amazônicas do Brasil: saúde e história social”. A pesquisa prosseguiu além da Amazônia, do Mato Grosso ao Rio Grande do Sul, dando origem ao livro “Violência e direitos humanos nas fronteiras do Brasil”.
 
Os estudos da Amazônia o levaram a percorrer os rincões daquela região: a viagem como método de conhecimento. Não bastasse o longo percurso das fronteiras, suas viagens amazônicas ainda atingiriam o ponto máximo com a “Expedição Humboldt”, no ano 2000: uma expedição científica (promovida pela UnB, em colaboração com a Universidad Simón Bolívar, de Caracas) que reuniu 40 artistas e pesquisadores (das Ciências Naturais e das Humanidades, de diversas instituições do Brasil e do exterior) e navegou, durante dois meses, mais de 11 mil quilômetros de rios da Amazônia venezuelana e da Amazônia brasileira. Victor coordenou esse grande esforço, ao lado do amigo Cézar Martins de Sá, saudoso professor do Instituto de Ciências Biológicas da UnB.
 
Pois Victor era, sobretudo, um viajante, um homem sem raízes (“graças a Deus!”), um humanista libertário que correu o mundo, movido pelas grandes ideias e pelo sonho, a espalhar a sua contagiante alegria e a sua inesgotável disposição para a amizade. Percorreu inúmeros países, viveu em vários deles e em dezenas de cidades. Seu périplo começou ainda na adolescência, quando deixou São Paulo para se tornar agricultor no sul da Bahia. Teve terras, estudou, formou-se em Direito, criou um jornal – “ Democrata”. Casou-se com Nenilda Marinheiro Leonardi (Nena) em Anápolis, de onde logo o casal partiu para o exílio: Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, a América Central, os Estados Unidos. De Nova York, seguiu para a França, desembarcou em Paris em maio de 1968 e logo aderiu às barricadas dos estudantes revolucionários. Trabalhou numa hospedaria, antigo castelo nos arredores de Paris, onde viviam imigrantes portugueses, muitos deles analfabetos, para os quais ele escrevia cartas; experiência que, anos mais tarde, inspirou o livro de contos “Quando o escriba do castelo era eu”. Trabalhou, também, na assistência a crianças órfãs, vítimas da guerra do Vietnã. Como aluno do Institut International de Formation et de Recherche en vue du Développement, passou o ano de 1971 em pesquisas na China, na cidade Wu-Han. Naqueles mesmos anos, fez suas primeiras viagens ao Oriente Médio e ao norte da África, continente ao qual voltaria alguma vezes. Na década de 1980, morou por alguns anos na Andaluzia, Espanha, realizando pesquisas em arquivos espanhóis e portugueses.
 
De uma longa viagem à Índia e ao Nepal e do grande interesse pelo Oriente, surgiu aquele que talvez seja o mais singelo e poético ensaio do Victor: Os navegantes e o sonho: presença do Oriente na história do Brasil, que trata da “presença sutil de várias culturas orientais no processo de formação da sociedade brasileira”. Em muitas de suas obras, os métodos e as consequências do colonialismo foram analisados e criticados, com propriedade. Mas, ao lembrar o universalismo dos grandes poetas da língua portuguesa, ele também destacou a síntese de que se constitui a cultura brasileira e as riquezas e potencialidades que ela incorporou. Potencialidade, por exemplo, para a construção da paz, vale dizer, para a fraternidade e a cooperação, para a superação das desigualdades, das múltiplas violências, da separatividade e dos preconceitos. Tênue luz no horizonte distante, utopia, mas possibilidade real que o enchia de esperança e que motivou seus melhores esforços, nas muitas dimensões da luta política e no trabalho intelectual para entender o nosso País, sem simplificações e reducionismos. Sobre isso, escreveu: “A história moderna foi tão povoada de intolerâncias nesses cinco séculos posteriores a Colombo, que o historiador que a conhece bem chega a sentir falta de ar. Daí o paradoxo: embora estude o passado, ninguém aspira tanto pelo novo, pelo futuro, como o historiador de ofício”.
 
Desde que saiu de Brasília, em 2002, com a morte de Nena, Victor Leonardi morou em diversas outras cidades: Rio de Janeiro, Búzios, Rio Bonito de Lumiar, Porto Alegre, Gramado, Florianópolis, São Paulo. Casou-se com Márcia Tonholi e, há muitos anos, passou a residir entre São José dos Campos, Campos do Jordão e a vila de São Francisco Xavier, na serra da Mantiqueira, onde os muitos novos amigos que cultivou, amantes das artes, o homenagearam, ainda em vida, dando seu nome a uma biblioteca e criando a “Virada Cultural Victor Leonardi”. Um grande boneco de carnaval, como os de Olinda, foi batizado “Vitão”. Um refúgio de fraternidade e alegria, que ele descreveu nestes versos:
 
Conheço vários espaços de brasilidade que ainda resistem diante do caos.
Um deles fica às margens do rio que tem nome do santo de Assis, o Francisco.
Um outro Francisco, o Xavier, deu nome ao lugarzinho tranquilo,
Da Serra da Mantiqueira, onde agora estou morando.
O Brasil sabe esconder e proteger seus mais belos refúgios...
O caos não nos dissolverá.